Final de sábado, extremamente cansada após muitos estresses no trânsito de Salvador, encontro dois amigos da arte que me aparecem com convites para um espetáculo de dança no TCA. – Vamos ver o BTCA hoje pra relaxar… É o espetáculo de estreia, dizem que está lindo… Sem muita animação, mas com confiança plena de que os amigos eram bons nas indicações culturais, me joguei numa poltrona do grandioso Castro Alves e pus-me a esperar o show.
Corpos velhos e jovens juntos em um só lugar e nada estava perdido na dança. O projeto “Agô, arerê, por favor, não aperte o mamão”, tem a direção coreográfica do mineiro Tuca Pinheiro e traz a cena a cidade de Salvador sob a visão do cantor Dorival Caymmi e do artista plástico Miguel Rio Branco. A releitura das músicas de Caymmi feita por Gerônimo Santana é simplesmente um espetáculo à parte. Poderia passar horas falando da ‘lindeza’ que é a sua direção musical.
O cantor e compositor baiano sempre surpreende no teatro, onde pode despejar sua potencialidade criativa com intensidade visceral, e neste projeto não foi diferente. Gerônimo apresentou o sincretismo religioso, ousando em misturar o Candomblé e o Catolicismo, inclusive em músicas “sagradas”, a exemplo da clássica “Ave-Maria”, onde inseriu os atabaques e sons dos ritos africanos dedicados aos santos negros.
O BTCA mostrou jovialidade e ousadia, entretanto observei que a quantidade de texto e cenas teatrais foi demasiada para uma proposta essencialmente de dança. O texto presente não diminui a dança, mas divide o olhar de quem está no lugar da plateia pronto pra contemplar os corpos em movimento.
O que fica mais forte pra mim do espetáculo é a figura de uma Bahia mística, contada através do repertório musical de Dorival Caymmi e narrada através da história de um povo com muita fé em tudo, não apenas em seus santos católicos e do Candomblé, mas em uma força presente no âmago de quem é baiano, uma força espiritual latente que torna o baiano um ser diferente, protagonista da história da Bahia, narrados de seus feitos.
O espetáculo é uma festa e está carregado de força espiritual. Há uma energia que não cabe ali em cima do palco e se expande para além das paredes do teatro. Há uma energia que se expande para além da memória da plateia que o vê, há espiritualidade e força em tudo ali, e é difícil de explicar. Não consigo. Por isso, escrevi um poema pra ilustrar um pouco do que vi. Aqui:
Sou orixá, iansã, erê,
Sua benção, mãe.
A criança tá pedindo doce.
Liçenca, meu padim Cícero.
Coloca a carranca na porta
Entra pra dentro, menino.
Ave, lá vem Maria no andor.
Minha conta já tá no pescoço
Cabeça raspada, tudo escuro nesse quarto.
Agô, arerê, Salve rainha!
E eu creio
Meu credo é um manifesto
Meu caboclo segura na mão da Irmã
Dulce.
Dulce, santa pequena
Abre o salmo 23, varre a casa
Benção, mãe.
Santo Antônio me arruma um marido
Que é pra eu ensinar ele a dançar, Oxalá!
Azul, verde, vermelho, amarelo
Minha fita no braço tá perdendo a cor.
Não tiro. Desejo vai realizar.
O atabaque batendo forte no meu peito
Não tenha medo que cê tá em casa.
Manifestar em festa manifestar
Tudo é música.
Mistura e dá samba.
Mistura e dá dança.
Jogue as cartas, bote o joelho no chão.
Pega o terço, se benze.
Lá vem a pomba girando na esquina
Essa é a força que tem o meu mundo.
Da encruzilhada vejo ela passar,
Ave-maria, lá vai a procissão subindo a Ladeira
Do Bonfim
Banho de água benta em mim.
Da terra, mata, água, ar, fogo, tudo num só.
Santo anjo me protege de dia,
Oxum me abraça de noite
E o tempo escorre nas mãos.
Toda hora é hora da dança desigual
Eu sou tua mãe, a força do povo.
Não me pergunte quem eu sou, que você sabe.
Você sente.
Eu sou a Bahia e tenho licença para ser quem eu quiser.
Salve povo de fé!