Um encontro entre dois pontos geográficos através de uma árvore. O encruzilhar para contar, recriar e inventar memórias. É o que se propõe “Derramei minhas fábulas em seiva de terra com meus olhos d’água”, exposição da artista visual, escritora e performer Jeisiekê de Lundu, transvestigenere nascida da divisa de Minas com a Bahia que, hoje – pode-se dizer enraizada a alguns anos, se banha pelas águas da baía de todos os santos, em Salvador, que estará disponível para visitação até 28 de março, na Galeria Goethe-Institut, no Corredor da Vitória.

Composta por esculturas, pinturas, vídeos-performances e instalações, a exposição traz a força da terra, do barro ao adobe, como disparadoras para contar histórias do corpo-memória da artista visual. “Esse trabalho se relaciona com o lugar mais íntimo de minha história, parte da tentativa de recriar memórias, da potência de recontar através de imagens nossas histórias”.

O núcleo expositivo – que conta com o diálogo curatorial de Ani Ganzala e Augusto Leal – é composto por trabalhos em que a terra aparece como a matéria ligadora entre a retomada de memórias e experimentação de técnicas como a geotinta, a aguada, o adobe e até mesmo a dança na extração de pigmentos. Uma exposição em que o gesto – do colher o barro para a escultura ou pintura – é mais importante. Lundu faz questão de enfatizar que o substantivo composto “diálogo curatorial” é exposto nos cartazes de divulgação pois ele ultrapassa o entendimento museológico de curadoria e se aproxima da ideia ancestral de zeladoria.

Tempos e Momentos
Em sua maioria, as obras a serem expostas foram criadas durante a residência artística Ocupação Casamendoeira, em que JeisiEkê de Lundu integrou o grupo de artistas da exposição “antes da casa, a árvore”, entre julho e setembro de 2023, situada no Povoado do Cruzeiro, na cidade de Conceição de Feira.

Os traços e movimentos de cada obra exposta em “Derramei minhas fábulas em seiva de terra com meus olhos d’água” narram a ligação entre a casa amendoeira onde vive Dona Norma (Matriarca da Família Barbosa) e casa nos olhos d´água, onde viveu Manjove (avó materna da artista, falecida com 102 anos durante a pandemia).

Existe uma tentativa de cruzamento estético entre as histórias dessas duas mulheres, que em seu tempo, conseguiram, cada uma a seu modo guiar suas famílias para driblar a fome e a falta de recursos. “Essas duas mulheres são retratadas aqui através de interpretações de seus objetos de uso cotidiano como o pente, o pilão, o fogão”, explica Lundu.

O capítulo expositivo traz, dentro de um mesmo espaço, obras de diferentes tempos. “As obras apresentadas na casamendoeira já tinham uma base mitológica em outras criações. A partir delas, nasce esta exposição. Percebi que elas fazem parte de um conjunto de outras guardadas no ateliê ou que foram criadas depois. De certo modo, elas fazem parte de um mesmo universo, só foram concebidas em momentos distintos”, pontua.

Pinturas e esculturas em barro que fazem parte do corpo-memória da criança artista e que “desde cedo lidei com um mundo que não me compreendia”. Jeisiekê de Lundu conta que “quando criança guardava coisas dentro de uma caixa de papelão, tinha esculturas de barro, feitas no quintal de terra dos olhos d’água, o mesmo lugar que minha avó criou suas filhas e minha mãe tirou sustento para criar os seus”.

“Este é um trabalho íntimo que relaciona a força da terra, a proteção e o conforto da argila unida ao fogo. O gesto aqui é mais importante que a materialidade, colher a terra, tratar a argila para só depois modelar uma forma que pode fazer lembrar alguma coisa. Tento me lembrar do pente de Manjove, do fogão que fora barreado com suas várias filhas, da farinha: alimento de todas as minhas gerações anteriores. Quero criar aqui uma lembrança”, realça Lundu.

Uma das obras a ser expostas é a instalação “quem procura o que não guardou, quando acha não reconhece”, que contém uma árvore de cinco metros criada para o espetáculo “Esperando Godot”, texto de Samuel Beckett e dirigido por Mirian Fonseca, em 2022. Agora, restaurada, busca refletir os achados e perdidos das memórias inventadas. “Godot é um texto longo e surrealista, em que a realidade é questionada o tempo inteiro. Na instalação, verso sobre a invenção de novas memórias. Importante falar que, o título da obra é uma frase familiar, que meu avô falava muito e, hoje, mãe repete”, descreve a artista.

Adobe
“Meu corpo tem um tanto de barro, faço esse gesto de preencher minhas veias com água e sílica, transformando meus órgãos em adobe tentando com isso construir um edifício com o que um dia chamaram corpo. Esse gesto que faço agora através da repetição dessas imagens tem intenções de aliviar dentro de mim um desejo de me transformar em pedra. Quero, me tornando adobe, alargar o inevitável. Talvez, meu corpo um dia se torne uma pedra, que daremos o nome cerâmica. Preciso falar sobre essas coisas, criar sutilezas aliviando o dia em que me tornarei pedra”, descreve a artista visual e performer.

A artista
Nascida na beirada entre Minas e Bahia, Jeisiekê de Lundu mistura montanhas e dendê para criar processos artísticos que envolvem cura, memória, ancestralidade, biopolítica em uma encruzilhada diaspórica sertaneja no litoral. Artista interdisciplinar, navega nas artes visuais em suportes como a performance e a escultura, cria microfilmes, escreve crônicas, costura e esculpe figurinos, cerâmicas, modifica faces utilizando maquiagem com elementos orgânicos e sintéticos.

Com suas esculturas e performances integrou exposições coletivas, como a Bienal do Sertão (2023), Casa Amendoeira (2023), Galeria Canizares (2022), Museu de Arte da Bahia (2019), Museu de Arqueologia e Etnologia (2018). Recentemente assinou a expografia da exposição Lapso Temporal (2023), em comemoração aos 35 anos da Casa do Benin no Brasil. ainda aberta para visitação. Fez parte também da equipe de montagem de “Histórias invisíveis”, exposição em comemoração aos 14 anos do espaço de memórias artísticas Acervo da Laje, na Casa das Histórias de Salvador (CHS), no bairro do Comercio.

Atualmente vive e trabalha na cidade de Salvador-Ba, onde cursou artes na Universidade Federal (UFBA) e coleciona trabalhos visuais nas artes cênicas, desenvolvendo cenografias, acessórios e adereços, figurinos e maquiagens, dentre eles “O trono da Rainha” (2022), “Esperando Godot” (2022) e a montagem vencedora do prêmio Braskem, na categoria melhor espetáculo, “Nau” (2021).

No cinema, esculpiu figurinos e modificou rostos nos documentários “Cantos do Mar” e “Territórios Negros” (2023), ambos produzidos pela Temdendê; no longa “A mensageira” (2022), pela Coisa de cinema; e o curta “Chico – meu amigo invisível” (2022), da Aworan Filmes. Como escritora, tem textos e poesias publicadas em antologias como Tinta Preta (2021), Hipocampo (2022), Gravidade (2018-2020) e Profundanças (2017).

Serviço
O quê – capítulo expositivo “Derramei minhas fábulas em seiva de terra com meus olhos d’água”, de Jeisiekê de Lundu
Onde – Galeria Goethe-Institut Salvador-Bahia (Corredor da Vitória)
Quando – até 28 de março
Horário de visitação – segunda a sábado 09h às 18h,