Confesso que possuo algumas paixões em vida, dentre elas: escutar e observar o meu derredor. Considero-me pouco falante, mas diuturnamente estou observando, pensado, analisando e refletindo. O exercício da reflexão é tão presente em meu dia a dia que, por diversas vezes, sou convidado, pelos mais íntimos, a “descansar a mente”. Não consigo mais ficar imune à vida e aos acontecimentos, em especial após ter entrado nos cursos de Ciências Sociais e Psicologia. As janelas de minh’alma se abriram e tive que me reconfigurar, reposicionando-me na existência.
Semanas atrás, duas amigas conversavam sobre cabelo e prontamente passei a escutá-las com aguçada curiosidade. Uma delas dizia que sua irmã tinha assumido seus cabelos naturais há um tempo. Foi, então, neste relato, que escutei pela primeira vez a expressão “o cabelo dela está em transição”. A palavra “transição” me chamou muita atenção, convocando-me a atentar-me mais pela conversa.
Comecei a dar-me conta que assumir o cabelo natural, dito crespo, não é algo tão simples para muitas mulheres afrodescendentes bem como para, provavelmente, muitos homens. Assumir o cabelo numa sociedade que supervaloriza os traços brancos e inferioriza os “negros” não é tarefa fácil, pois envolve ir contra o estabelecido, sendo necessário empoderamento, pois não alisar o cabelo não é apenas um ato estético, mas político e subjetivo. Político, pois se refere à capacidade de questionar as normas coletivas. Subjetivo, pois envolve uma mudança na percepção de si e dos outros. Posso também afirmar que é um ato de resistência em terras brancas e de chapinha…
…nossos cabelos, amores e sexualidades respinguem águas de transformação por onde passarmos! Ninguém ficará imune…
Há algum tempo, tenho escutado, informalmente, mulheres que dizem que o processo de transição capilar é doloroso. Uma colega, certa feita, me compartilhou seu sofrimento: “após anos com o cabelo com química, foi difícil para mim me olhar no espelho e ver meu cabelo natural. Fiquei dias em casa com depressão… Só depois é que fui me acostumando… Nem lembrava mais de meu cabelo natural…” Talvez esse relato retrate a vivência de muitas mulheres.
Outra amiga me contou que tenta assumir seu cabelo natural, mas as colegas no trabalho são as primeiras a criticá-las com brincadeiras que a deixa muito triste. Por vezes, me partilha suas vivências e lutas para ser o que se é ou deseja ser… Tem em casa um turbante, mas titubeia em utilizá-lo diante das censuras dos familiares. Tudo começa em casa, recordo-me!
Voltando à primeira cena/relato desse texto, à medida que escutava minhas amigas falando sobre transição capilar, lembrava-me que assumir o cabelo natural tem lá suas semelhanças com o assumir a sexualidade, caso a pessoa não seja heterossexual. Muitos são os indivíduos que passam anos lutando contra si para não ser o que são. Sufocam-se nos armários existenciais, não se escondendo apenas dos outros, mas de si mesmo em nome da “moral e dos bons costumes”, bem como da aprovação social. Alguns chegam a casar, mas permanecem infelizes ou fazem no calar da noite o que a sociedade não lhes permite à luz do dia. Vivem na hipocrisia, já que é o que se deseja e pode fazer!
O que mais me impactou ao pensar sobre esses relatos foi perceber como os fenômenos guardam semelhanças, resguardadas as devidas proporções. Assumir-se para aqueles que sempre disseram “seu cabelo é ruim”, “passa um alisante pra ficar legal”, “dá um jeito neste cabelo”, “que cabelo feio”, “gay é do diabo”, “isso é perversão”, “viado tem que morrer”, “é só uma fase”, não é uma empreitada simples. Assumir-se envolve capacidade de lidar com o olhar do outro e com as punições existentes nele, bem como com suas palavras, atos e não ditos. E as punições não vêm de estranhos, advém primeiramente das pessoas que mais amamos…
Cabelo e sexualidade muito dizem de nossa organização social e do quanto ainda temos muito a fazer pela transformação estrutural da sociedade. Quantas pessoas escondem a beleza do que são por causa destas normatizações? Quantos escondem seu cabelo e sua sexualidade? Quantos sofrem por não se aceitarem e somatizam de diferentes formas a dor de ser o que se é?
De uma coisa, tenho certeza: necessário se faz a existência de homens e mulheres que falem sobre essas questões e que mostrem a beleza do que são além da feiura imposta pela classificação preconceituosa e estigmatizante do outro.
A meu ver, tudo começa na infância ao ouvir as palavras de reprovação dos outros significativos, ou seja, daqueles que ocupam o lugar de idealização: pai, mãe, professores, parentes, amigos. Não tendo referências identitárias outras, o que resta para muitos é a conformação ao já estabelecido. E a questão não para por aí, pois perpassa as propagandas, o discurso midiático, religioso, etc.
Apesar das normatizações, percebo que vivenciamos outros tempos, pois já se percebemos discursos que legitimam as diferentes maneiras de ser na existência. A caminhada é longa, porém vejo muitos lampejos de mudança. Pessoas que são impactadas por novos olhares que nos colocam em transição… Estar em transição implica passagem, atravessamento e mudança…
Que nossos cabelos, corpos, amores, subjetividades e sexualidades possam respingar águas de transformação por onde passarmos! Ninguém ficará imune…