Uma conversa sobre responsabilidade social, autoestima e machismo

Por Curiando o Rolé

O tilintar das miçangas de um xale de dança do ventre foi a fagulha para Angela Cheirosa curar a depressão após a morte do marido, se transformar em professora de dança do ventre e impactar a vida de milhares de mulheres. Há nove anos, o Flor de Lótus, projeto social fundado por ela, movimenta a vida cultural de Camaçari e oferece aulas gratuitas que vão muito além das batidas de quadril.

No começo, a proposta era criar um espaço de apoio emocional para donas de casa e senhoras da periferia. “Era uma coisa bem voltada para a autoestima, para o empoderamento, para o lazer, o bem-estar. Não participava de concurso, os eventos eram voltados para as bailarinas (alunas). Depois de quatro anos, ouvi o mercado. Eu preciso ter show profissional, fazer mostra coreográfica”.

Foto: Divulgação

A ampliação dos anseios do Flor de Lótus já formou bailarinas profissionais, quatro professoras de dança e profissionais em outras áreas como o Direito. Mas o foco do autocuidado não sai de cena. “A autoestima é um caminho sem volta. Você começa a se gostar mais, a se olhar, a ver mulheres iguais a você e sentir que é possível ser bonita”.

Ainda no começo do projeto, algumas alunas passaram a confidenciar situações de fome, violência doméstica, abuso infantil e outras vulnerabilidades sociais. “A gente foi crescendo, se multiplicando e tendo uma rede de apoio.” São amigos, advogados, comerciantes, e órgãos públicos como o Conselho de Assistência Social, a Base Comunitária de Segurança (Polícia Militar).

Foto: Fernanda Maia

“Quando eu preciso de ajuda, eu levanto a mão e eles ajudam. E recebo a cartinha (deles). Recebo a pessoa com vulnerabilidade. A gente insere no contexto sem as pessoas saberem. O máximo que eu falo é: está chegando uma pessoa nova que está precisando da gente, que está passando por perrengue e vocês vão colher”.

Contratempo

Antes da pandemia, o Flor de Lótus tinha 150 alunas, que participavam das aulas que aconteciam em espaços como escolas da rede pública e associações de bairro. São sete bairros de Camaçari e o trabalho alcança também o município vizinho de Dias D´Ávila. Além de inúmeras apresentações nas praças da cidade, Angela promove para as alunas um espetáculo uma vez por ano em um teatro com palco, luz e som profissionais.

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O distanciamento social da pandemia deu uma pausa nas aulas e o que acontecia entre um passo e outro de dança virou o foco. A rede de apoio foi mobilizada e novos parceiros chegaram para garantir a alimentação das famílias de muitas alunas.

“Antes da pandemia e agora a gente precisa de colaboração para assistir essa vulnerabilidade alimentar que ainda existe. Não são todas (as alunas) em situação de vulnerabilidade. O que eu arrecadava internamente já era suficiente. A gente se virava ali e alguns amigos, alguns parceiros”.

Foto: Fernanda Maia

Mas o cenário mudou e pensando no impacto econômico da pandemia, Angela vê a necessidade da ampliação da rede de apoio “Eu gostaria de poder contar com colaboradores mensais para a gente ter aquela garantia de que não vai faltar. A gente precisa pensar em quem não tem”.

Tinha tudo para dar errado

No inicio do projeto Angela viu nas associações de moradores o espaço para as aulas, ainda que o piso não ajudasse e as salas não tivessem espelho. Mas o difícil foi vencer o machismo. As associações geralmente são geridas por homens e as atividades nestes espaços são prioritariamente masculinas.

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“Tem essa dificuldade de coabitar o mesmo espaço com outras modalidades por causa do machismo, por conta dessa autoestima masculina de achar que tudo que mulher faz é para ele. No meu horário não pode ter baba, bar aberto, o fluxo de pessoas tem que ser limitado e ainda assim eu já tive problema com uma série de homens com o celular disfarçado gravando”.

A abordagem das alunas também foi desafiadora. A dura realidade social de mulheres negras da periferia, desempregadas, vítimas da violência, com corpos fora dos padrões de beleza e sob a influência de religiões preconceituosas, coloca a dança do ventre como algo impossível.

No ambiente familiar, o machismo, a objetificação do corpo da mulher foi (e é) mais uma barreira. Os pais e maridos questionam. “Está fazendo dança do ventre para que? Está querendo agradar a quem? Nunca passa pelas cabeças que ela está querendo se agradar, se resgatar. Foi muito difícil”.

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Resposta na ponta da língua

Para apoiar as alunas, Angela treinava e ainda treina de forma descontraída as respostas para as perguntas e comentários preconceituosos.

– “É para agradar o marido?”

– “Não. É para me agradar.”

 – “É para dançar para o marido de noite?”

 – “Se eu quiser e ele merecer. Eu estou dançando para mim.”

 “É uma dança que a gente precisa deixar tudo muito claro para quem pratica. Explicar e ensinar como quebrar os estereótipos”.

 Angela Cheirosa

Professora e bailarina de Dança do Ventre.

Produtora cultural, escritora, palestrante e mantenedora do Projeto Social Flor de Lótus,

Formações e especializações em dança, dialogando o fazer dançante com a pauta racial.