Com abertura no dia 01 de agosto, data marco da Independência do Benin (1960), a exposição traz fotografias do Acervo Arlete Soares

Um vale, pavimentado por pedras históricas. Uma encruzilhada que liga quatro pontos do Centro Histórico – Pelourinho, Taboão, Carmo e Barroquinha. Em uma das esquinas, dois grandes casarões fundem-se para ser conexão, espaço de fluxo cultural. Lugar de lembrança. Vivo. Para conhecer artistas, intelectuais e pessoas. Uma grande Casa, branca.

Casa do Benin

Um edifício que nos lembra cotidianamente há 35 anos o intercâmbio sociocultural e político entre dois países, uma relação que é retomada entre os anos de 1986 e 1988, no projeto Bahia-Benin, encabeçado pelo então prefeito de Salvador na época, Mário Kertész, através da recente criada Fundação Gregório de Mattos (FGM). Fluxo e refluxo, que nos levará ao dia 01 de agosto de 2023, a partir das 18h30, para a abertura da exposição Lapso Temporal – Casa do Benin, 35 anos, com fotografias e documentos do Acervo Arlete Soares. Um chamamento imagético que reacende as relações Bahia-Benin.

Lapso Temporal

Casa do Benin, 35 anos é um projeto concebido pela antropóloga Goli Guerreiro em conjunto com a artista Lia Krucken. Guerreiro assume a curadoria geral, junto a uma equipe curatorial formada por 5 artistas baianos de diversas linguagens – teatro, filosofia, curadoria, dramaturgia, artes visuais: Álex Ígbò, Diego Araúja, Laís Machado, Rogério Felix e a própria Lia Krucken. Esse núcleo trabalhou ao lado da fotógrafa Arlete Soares, que foi e é partícipe das cenas, dos sons e dos acontecimentos.

“Quando a FGM nos convidou pra montar essa Exposição, chamei a Lia Krucken pra concebermos juntas o projeto, que sugeriu uma equipe curatorial que reunisse pessoas de várias áreas, para que as imagens de Arlete Soares fossem lidas de um modo transdisciplinar, transgênero, transtudo. Intuitivamente, chegamos em nomes de pessoas que nem eram nascidas na época em que o Projeto Benin/Bahia aconteceu”, conta Guerreiro, ao acrescentar que a expografia é de JeisiEkê de Lundu, mulher trans, artista visual, escritora e performer e o projeto gráfico é da editora soteropolitana Duna.

Ela fala que Lapso Temporal tem por objetivos (re)etabelecer conexões perdidas de muitos modos, e que clama por novas pontes e fluxos. As imagens que compõem a exposição constituem um documento único do compartilhamento de experiências vivenciadas nos dois lados do Atlântico sul por baianos e beninenses. “Essas imagens singulares guardam significados amplos e nos restituem as nuances de nossa irmandade inequívoca”, comenta Goli Guerreiro, que já trabalhou ao lado de Arlete Soares na extinta Corrupio, editora responsável pela publicação do primeiro livro de Pierre Verger no Brasil na década de 1980, etnólogo e fotógrafo que também participou das viagens.

Lapso Temporal nos convida a ver e sentir os trânsitos entre o continente africano e sua diáspora e mostra os meandros do Projeto Benin-Bahia, que deu origem à Casa do Benin, em Salvador, e Casa do Brasil em Uidá, há 35 anos. Um projeto nascido para comemorar o centenário da abolição da escravatura. Que levou baianos a Cotonou, Abomey, Uidá – no Benin, e beninenses a Bahia. O reencontro. O reconhecimento. A retomada de relações. Uma Bahia que foi muito influenciada pela cultura beninense. E um Benin que também foi influenciado pela cultura da Bahia. As fotografias feitas pela Arlete naquele período são uma evidência dessa troca.

“Esses registros nos fazem mergulhar no que foi, para pensar no que se pode ser. Esse momento traz como narrativa principal o debate e a construção de uma nova relação com o outro lado do Atlântico. É uma nova narrativa de fluxo de debates, de fluxo de meios para que essa relação seja retomada em sua complexidade. Um relacionar com o diferente e não com o espelho, por mais que seja tentador. É importante dar continuidade a esse intercâmbio cultural amplo e capilarizado – religioso, artístico, gastronômico, filosófico e político. Uma narrativa que nos mobiliza a criação de memórias”, ressalta o curador de Lapso Temporal, Diego Araúja.

Lapso Temporal não é só um festejo comemorativo de 35 anos. São 35 anos de resistência da Casa do Benin. Arlete Soares, que na época integrava a diretoria da FGM, é e foi partícipe das cenas que registrou, dos sons e dos acontecimentos políticos e culturais que desaguam na criação da Casa do Benin. Guerreiro e Krucken falam sobre a alegria que foi re-ver personalidades que vivenciaram aquele momento, nomes como: Mãe Stella de Oxóssi, Pai Balbino de Xangô, o companheiro de profissão e amigo de Arlete, Pierre Verger, a arquiteta ítalo-brasileira Lina Bo Bardi, Arany Santana, Gilberto Gil, João Jorge (na época também diretor da FGM, hoje presidente da Fundação Palmares), Vovô do Ilê, Carybé, dentre muitos outros. A exposição terá um espaço dedicado a essas personalidades, o “olimpo moderno”, expressão trazida por Guerreiro durante os diálogos curatoriais.

Arlete Soares destaca, ainda, o apoio fundamental de Mário Kertész para o projeto da Casa do Benin, que “sem ele nada disso teria acontecido”. Das viagens, mais de duas mil fotografias e tantos documentos – grande parte inédito ao grande público. As fotografias e documentos só vêm a público 35 anos depois, a partir de um chamamento governamental de comemorar estes intercâmbios que levam a Casa do Benin – hoje gerida pelo produtor cultural Igor Tiago Gonçalves, das imagens quererem vir à tona e de alguma forma renovar esse imaginário e reativar as relações. A ideia de Lapso Temporal é concreta no sentido que vem um material físico e analógico que atravessa toda essa temporalidade e chega no digital.

“Uma fotografia ou objeto pode ativar memórias. Sentimentos que se relacionam com nossa ancestralidade e nosso inconsciente vêm à tona. Lapso também relaciona-se a esse tipo de movência. Quem olha uma fotografia de outro tempo, hoje, atualiza automaticamente a imagem, a partir do seu próprio referencial e do que a imagem traz. E quando não temos informações, vamos tentar imaginar aquele contexto, o que aconteceu ali. Vamos perguntar para outras pessoas sobre histórias e rituais e imaginar como nos relacionamos com aquela imagem, aquele lugar, com aquele momento”, realça Krucken.

Nesse sentido, Lapso Temporal terá uma seção específica que é o Laboratório Analógico, em que a fotografia coloca enquanto documento, somada a cartas, ofícios, matérias de jornais e negativos, arquivos abertos para pesquisa em diversos campos de estudo. Um dos propósitos da exposição é contar histórias e criar novas narrativas. É um rito. Fotografias que registram culturas africanas e a diáspora, que trazem uma outra ideia de temporalidade. Não linear. Uma fotografia, diferentes pessoas, cada uma com uma forma de pensar o mundo, e elas se conectam à leitura da imagem.

“A gente já percebeu muitas pessoas olharem as fotos no Benin e se reconhecerem nelas”. “Essa criança aqui sou eu!”. Isso aconteceu de fato e virou um poema, escrito pelo poeta nascido e criado no bairro Nordeste de Amaralina, Milsoul Santos, em que fala “Eu também sou do Benin”. Acreditamos que isso ocorrerá muito. Além de imaginarmos que algumas pessoas vão reconhecer coisas que nós da curadoria não reconhecemos de forma objetiva, mas subjetiva. Essa perspectiva nos levou a duplicarmos a quantidade de imagens previstas inicialmente”, conta Krucken.

Além da exposição na Casa do Benin, Lapso Temporal ocupará também as ruas do Centro Histórico, com lambes que convidam os transeuntes a adentrar a Casa. Durante toda a exposição, que vai de 01 de agosto até 16 de dezembro, ocorrerão algumas ATIVAÇÕES: colagem de lambe, oficinas de escrita com imagens e Creollage; rodas de conversas com Arlete Soares e convidados; encontros e ações de mediação cultural.

“A exposição nasce com o desejo de ativar um espaço de diálogo e de novos encontros, e por isso, nós (a equipe curatorial) agradecemos muito a Chicco Assis e Igor Gonçalves pelo convite”, finaliza Krucken. Lapso Temporal – Casa do Benin, 35 anos é uma realização da Fundação Gregório de Mattos, Goli Guerreiro e Acervo Arlete Soares, com financiamento da Fundação Gregório de Mattos, Secretaria Municipal de Cultura, Prefeitura de Salvador.