O retorno da tradicional festa em 2023; Você conhece sua origem? Confira a reportagem!

Sentimento de gratidão no ar e uma multidão de pessoas no chão. O perfume da alfazema e o aroma das flores e da água de cheiro se espalham pelas ruas da Cidade Baixa, oferecendo a purificação da alma e a abertura de novos caminhos. Tanto católicos quanto adeptos do Candomblé se reúnem na segunda quinta-feira de janeiro, após o Dia de Reis, para renovar a sua fé e reverenciar Oxalá e Jesus Cristo, também conhecido como Nosso Senhor do Bonfim. 

Quando se trata do Bonfim, não se pode deixar de falar, é claro, do tradicional dia da Lavagem. Ficando atrás apenas do Carnaval, esta é considerada a segunda maior manifestação popular da Bahia, reunindo não só soteropolitanos, mas milhares de fiéis de diversos lugares. O cortejo, que antecede a lavagem das escadarias, é guiado pelas baianas com trajes típicos – torços, saias engomadas, braceletes e colares – que, partindo da Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia, onde se concentram, andam em direção à Basílica de Nosso Senhor do Bonfim. Num percurso de 8 quilômetros, as baianas, seguidas pelos Filhos de Gandhi e uma multidão vestida de branco, caminham ao som de instrumentos e cânticos de origem africana. 

É difícil definir onde termina um bairro e começa o outro quando se trata desse território da Cidade Baixa. Pode-se dizer que Bonfim, Monte Serrat, Boa Viagem, Largo de Roma, Mares e Ribeira são partes de um todo e que, entre eles, há uma conexão muito forte,  todos estão interligados de alguma forma. “Eu acho que a península itapagipana é toda muito unida, muito coesa. Realmente a gente se considera dentro de um grande bairro”, afirma Monika Marques, moradora da Boa Viagem há mais de 40 anos. “O que me encanta na região é a sensação muitas vezes de que você está numa cidade do interior, onde todo mundo fala com todo mundo, onde se dá bom dia, onde se conhece os vizinhos todos. E ainda a proximidade com uma praia tão bonita que representa Salvador de uma forma tão especial.” 

Memórias do Bonfim

Tamanha é a importância dessa data para a cultura popular brasileira que, em 2013, foi tombada pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), ganhando o título de Patrimônio Imaterial do Brasil. Embora a Lavagem seja tão famosa, muitos não conhecem sua origem, inclusive soteropolitanos e moradores do próprio Bonfim. As calçadas do bairro sobre as quais andam guardam camadas de séculos de história que, na correria do cotidiano, acabam passando despercebidos aos olhos de quem passa por ali.  

Aos 73 anos, e morando na Boa Viagem desde os 10 anos, Zilma Maria de Passos conta que, apesar de muitos anos sem ir, já aproveitou muito a Lavagem quando mais nova. “A coisa que era mais bonita para mim era depois da missa, quando Carlinhos Brown chegava com a percussão dele toda vestida de branco, com tanto incenso que a fumaça tomava conta do espaço. Depois vinham os filhos de Gandhi e as baianas. Era muito lindo, era uma emoção muito forte. Arrepiava, sabe? E a gente fazia o percurso que nem sentia, num instante chegávamos na Baixa do Bonfim. Essa é a imagem que eu tenho mais forte. Era um espetáculo, lindo de ver e de viver.” 

Sincretismo Religioso 

Nos tempos coloniais, os africanos que chegavam em terras brasileiras nas condições de escravos não tinham liberdade para cultuar suas divindades. Sendo o catolicismo a religião oficial imposta no país, esses escravizados encontraram nela uma forma estratégica de resgatar os costumes das terras de onde vieram. Passaram, então, a associar seus orixás aos santos católicos para poderem continuar a exercer sua fé, ainda que de maneira camuflada. 

Os integrantes da Irmandade de Devoção ao Senhor do Bonfim, formada por devotos leigos, encarregavam os escravos de lavar a Igreja como parte dos preparativos para a festa do Senhor do Bonfim, que ocorre no segundo domingo do ano. “Blasfêmia” e “resquício de paganismo” foram alguns dos termos utilizados para retratar a indignação dos católicos estrangeiros mais ortodoxos perante o evento onde o sagrado e o profano se entrelaçam. Logo, o que começou como um obstáculo à expressão da cultura africana se tornou a segunda maior festa da cidade, que é a Lavagem do Bonfim.

O resultado de uma promessa 

Nos séculos passados, era comum capitães batizarem suas embarcações com os nomes de santos dos quais eram devotos. E foi dessa forma que o navio mercante “Senhor do Bonfim” atracou em Salvador na década de 1740, a comando do grande capitão português Teodósio Rodrigues de Faria. Proprietário de três barcos, após passar anos indo de porto em porto na rota costeira da África, decidiu estabelecer-se em terras baianas e investir no comércio, inclusive de africanos escravizados que aqui chegavam. 

Conhecido por sua grande devoção ao Senhor do Bonfim, Teodósio trouxe de Lisboa, em 1745, uma réplica em madeira, medindo 1,06 m de altura da imagem presente em Setúbal, sua cidade natal. O presente foi o pagamento de uma promessa feita em meio a uma intensa tempestade em alto-mar, durante a qual apelou pela proteção do Cristo crucificado. Sua principal razão foi “eternizar a graça de não ter morrido no naufrágio da embarcação que o trazia de Portugal à Bahia”. Com ela, veio também uma imagem de Nossa Senhora da Guia e, no mesmo ano, o capitão fundou juntamente com outros portugueses a chamada Devoção de Nosso Senhor do Bonfim. 

Onde tudo começou: A chegada da imagem milagrosa 

Diz a história que o culto ao Senhor do Bonfim originou-se em Setúbal, Portugal, quando, em meados de 1670, uma imagem de Cristo crucificado de braços abertos foi encontrada flutuando nas águas do Rio Sado. Foi um evento milagroso para toda a cidade, que viu aquilo como uma alusão a Cristo em ascensão aos céus. Logo, decidiram qual “fim” a imagem teria, e que este deveria ser um “bom fim”, pois não era todo dia que algo desse porte acontecia. Não tardou e a figura sagrada foi chamada de Nosso Senhor do Bomfim (escrita com M), sendo abrigada na pequena igreja que, eventualmente, se chamaria Igreja do Nosso Senhor do Bonfim.  

Bonfim: A esperança de um novo começo 

Apesar de todas as alterações ao longo dos anos, o acontecimento mais inesperado de todos foi, sem dúvidas, o cancelamento da Lavagem de 2021. Pela primeira vez em 276 anos, o festejo não aconteceu como de costume. O anúncio foi feito em conjunto pelo prefeito de Salvador, Bruno Reis, e pelo reitor da Basílica Santuário, padre Edson Menezes da Silva. No intuito de evitar aglomerações e cumprir os protocolos de segurança, apenas a imagem do Cristo Crucificado circulou em carro aberto, fazendo o mesmo percurso do cortejo da lavagem. 

A Colina Sagrada foi fechada e não houve a tradicional lavagem das escadarias, apenas as autoridades eclesiásticas e políticas participaram do ato de recepção da imagem. Tanto as missas quanto a chegada da imagem de Jesus crucificado à Igreja foram transmitidas ao vivo pela internet para que os fiéis acompanhassem tudo. 

Após dois anos sem festejos de rua por causa da pandemia da Covid-19, a Lavagem do Bonfim enfim retornou em 2023 com toda a força e fé de costume, nesta quinta-feira (12). Este ano o tema escolhido foi “Há 100 anos cantando: ‘Glória a Ti neste dia de glória’”, em homenagem ao centenário do hino ao Senhor do Bonfim.